“DEUS ME SALVE!” : O Fundamentalismo Cristão Norte-americano
- Breno Baptista Flor

- 11 de out.
- 4 min de leitura
Atualizado: 18 de out.

O fundamentalismo, de maneira geral, entende-se como um fenómeno social que perdura sobre uma corrente de ideias religiosas sustentadas e ditadas por um grupo ou comunidade eclesiástica que acredita que apenas a sua visão ou doutrina detém o título de verdade divina. Esta definição abrange qualquer tipo de religião ou crença, não se reservando apenas às religiões orientais ou monoteístas, como é geralmente acreditado pelo senso comum.
O termo “fundamentalismo” teve origem nos Estados Unidos, no início do século passado, com os textos The Fundamentals, publicados entre 1910 e 1915 por dois irmãos evangélicos e comerciantes que tinham como objetivo compilar escritos de teólogos conservadores da virada do século.
O fundamentalismo norte-americano é proporcional ao surgimento do próprio Estado norte-americano. É uma constante da história dos Estados Unidos, como afirma Castells. Esta ideia começa com os federalistas pós-revolucionários, entre eles Timothy Dwight e Jedidiah Morse. Na realidade, esses pós-revolucionários herdaram uma linha de pensamento dos puritanos ingleses e irlandeses que fugiam ao domínio cristão apostólico romano no velho continente. Na sua essência, ele condenava os “males da globalização”, isto é, todos os encargos trazidos pela modernização da sociedade global. Via a busca desenfreada pela transformação social como o grande mal da era, responsável pela desintegração das instituições cristãs, das regras morais e de todo o segmento social pregado pelos escritos sagrados da Bíblia.
Contudo, o fundamentalismo não se limita à ordem social norte-americana, transcendendo também para os setores político-institucionais do próprio país, onde passou a ter grande representatividade. O cristianismo norte-americano seleciona elementos que considera como “inimigos da nação e do cristianismo”, uma perceção entendida pela sociedade como uma real ameaça que deve ser combatida.
Nos anos 50, durante o auge da Guerra Fria, o inimigo do cristianismo conservador era o “satã comunista”, o que deu origem ao macarthismo, projeto de lei aprovado pelo senador Joseph McCarthy que perseguia e capturava todos aqueles com ideais ou práticas consideradas comunistas, num movimento conhecido como “caça às bruxas”. Depois disso, o fundamentalismo cristão enfrentou uma crise de identidade, pois já não havia um inimigo concreto. Nos anos 90, com a eleição de Bill Clinton, o fundamentalismo dá um salto para o cenário político sob a forma de uma coalizão cristã com o partido conservador, liderada por Pat Robertson e Ralph Reed, com cerca de 1,5 milhão de filiados e uma considerável influência política sobre o eleitorado republicano.
Outros fatores demonstram a força do cristianismo norte-americano: pesquisas feitas nos anos 70 indicam que um em cada três adultos já passou por experiências de conversão religiosa e mais de 80% da população acredita que Jesus Cristo é um ser divino. O sentimento evangélico é, de facto, a grande combustão da rede fundamentalista, pois acredita-se que todos os setores sociais, políticos e económicos (como o libertarianismo, por exemplo) devem seguir o mesmo segmento evangélico.
Existem quatro conjuntos de crenças que sustentam esta rede: o primeiro é a fé absoluta com base na Bíblia, única detentora da verdade; o segundo é a salvação individual pela fé em Cristo, segundo a qual todos os que aceitam Jesus serão salvos e irão para o reino dos céus; o terceiro é a esperança no retorno de Cristo; e o quarto é o apoio a outras doutrinas cristãs, de modo a propagar o evangelho em diferentes camadas da fé. O principal ato modelador do cristianismo é a conversão, que implica a aceitação de Cristo como salvador e guardião.
A rede fundamentalista cristã acredita que o principal eixo institucional e coordenador de todo o aparato religioso é a família. A família é vista como o espaço onde os indivíduos aprendem os ensinamentos cristãos e como o “refúgio” num mundo caótico e hostil. Este eixo social assenta no princípio do patriarcado, na autoridade do homem sobre a mulher e na estrita obediência dos filhos, muitas vezes reforçada por métodos coercivos, como agressão física se necessário. Alguns defendem que o ser humano nasce em pecado e que cabe à família detectar essa tendência para o mal e educar para a obediência aos pais e o temor a Deus.
Nas décadas de 70 e 80, o fundamentalismo cristão, depois de considerar inimigos do cristianismo os banqueiros, comunistas, hereges e judeus, passou a ter como alvo os homossexuais e feministas. Esses grupos, emergentes na altura com o fluxo global dos movimentos transnacionalistas, eram vistos como ameaças devido à sua ruptura com a estrutura tradicional da família, considerada a base da estabilidade social e da realização pessoal. A luta contra o aborto simbolizou um dos esforços máximos para a defesa da família nuclear e dos valores da vida e do cristianismo, tornando-se uma das causas centrais da militância fundamentalista cristã nos Estados Unidos.
Quem são os fundamentalistas cristãos norte-americanos contemporâneos? A pergunta é feita na obra de Castells, que se baseia nas ideias de Clyde Wilcox. Este apresenta dados estatísticos comparando os evangélicos com o restante da população e conclui que os fundamentalistas contemporâneos são, em geral, mais pobres, com menor nível de escolaridade, maior influência entre as donas de casa, e vivem maioritariamente no norte do país. São mais religiosos do que no passado e consideram a Bíblia um livro infalível. Outras fontes indicam que estão concentrados nas regiões sul e sudeste, sobretudo na Califórnia, em setores de serviços recém-estabelecidos e em zonas de expansão populacional.
Isto mostra que, por mais gerações que passem, o objetivo do fundamentalismo é preservar ideias e padrões de comportamento de carácter rural em zonas cada vez mais urbanas. O processo de globalização, segundo Misztal e Shupe, promoveu o fundamentalismo cristão de forma dialética.
Para encerrar, pode-se afirmar que o fundamentalismo cristão teme o fim do patriarcado, visível no aumento dos casamentos tardios, no número crescente de divórcios e nas uniões fracassadas, consequências dos movimentos surgidos com a globalização e da consequente crise social.
No campo político, por meio de coalizões dentro das instituições governamentais, mesmo após o colapso da URSS e o fim da Guerra Fria, o fundamentalismo continuou a opor-se ao chamado “governo mundial”. Criticava as organizações internacionais, como a ONU e o FMI, por impor sanções contra os Estados Unidos devido a alegadas más práticas no cenário internacional. O movimento via essas instituições como ameaças à soberania e autoridade do governo federal norte-americano e opunha-se à nova ordem mundial marcada pela multipolaridade e pela crescente influência das organizações internacionais.
Bibliografia
CASTELLS, Manuel. Paraísos comunais: identidade e significado na sociedade
em rede: Deus me salve! O fundamentalismo cristão norte-americano. In: CASTELLS,
Manuel et al. O poder da Identidade. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. v. 2, cap. 1,
p. 38-43. ISBN 85-219-0336-7.







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