A NOVA ARQUITETURA DA MATÉRIA : o BRICS e a Desdolarização
- Kwame Neto de Vasconcelos
- 12 de out
- 4 min de leitura
Atualizado: 23 de out

Durante oitenta anos, o dólar norte-americano foi a gramática invisível da economia mundial. Desde Bretton Woods, o sistema financeiro global assentou na promessa de que o valor universal teria a sua medida nos cofres da Reserva Federal. Essa ficção monetária transformou-se no alicerce do império norte-americano, garantindo aos Estados Unidos o privilégio de imprimir dívida e convertê-la em poder político, militar e diplomático. Contudo, o século XXI inaugurou um ponto de inflexão. O que parecia inamovível começa a ceder. O bloco BRICS, formado pelo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, acaba de revelar o projecto de criação de uma Bolsa de Metais e Minerais Preciosos, que brevemente virá a tornar-se numa plataforma que permitirá liquidar transações em ouro e em metais raros. A decisão encerra inequivocamente a mensagem de que o eixo do poder económico está a deslocar-se, e o dólar deixou de ser o centro do mundo.
Durante anos, analistas ocidentais especularam que o BRICS criaria uma nova moeda fiduciária para rivalizar com o dólar. No entanto, o bloco percebeu que a força não reside apenas em imprimir notas, mas em controlar os recursos sem os quais nada pode ser produzido. É nisso que o projecto do bloco BRICS ganha densidade estratégica. Os países do BRICS detêm cerca de 72% das reservas mundiais de metais raros e processam 75% da produção global. São ainda responsáveis por 70% do cobalto e 50% do níquel. Estes dois últimos elementos são indispensáveis à indústria de baterias eléctricas e à transição energética. Dominar a matéria é, portanto, dominar o século.[1]
Estes recursos minerais tornaram-se o sangue oculto da civilização contemporânea. Nada funciona sem eles. O telemóvel, o míssil hipersónico, a turbina eólica, o automóvel eléctrico e o motor tecnológico do nosso tempo são todos feitos com minerais. É por isso que esta nova bolsa de metais preciosos não é um mero mecanismo financeiro. É uma declaração de soberania material contra a hegemonia abstrata do capital ocidental.
Historicamente, o preço do ouro e dos metais tem sido fixado por instituições sediadas em Londres e Nova Iorque, como a London Metal Exchange e a Chicago Mercantile Exchange. São estruturas criadas para proteger os interesses do Norte Global, controladas por bancos que decidem em segredo o valor da riqueza alheia. Depois da guerra na Ucrânia, essa arquitetura revelou a sua natureza política. A exclusão da Rússia do sistema SWIFT transformou um instrumento técnico num braço da política externa americana. Em resposta, o bloco decidiu construir os seus próprios mecanismos de compensação com a ajuda do sistema CIPS chinês, as câmaras de liquidação em rublos, rupias e reais, e agora esta bolsa de metais preciosos, que inaugura uma nova ordem financeira baseada em activos tangíveis. Trata-se de um modelo que retira o privilégio do Ocidente de sancionar unilateralmente e de manipular o preço das matérias-primas. O poder acaba por mudar de mãos, silenciosamente, mas de forma irreversível.[2]
O enfraquecimento do dólar é já um facto empírico. Em 2025, a moeda americana registou a sua pior desvalorização desde o abandono do padrão-ouro em 1973.[3] Em apenas seis meses, perdeu mais de 10% do seu valor face às principais moedas globais. Actualmente, cerca de 67% das transacções entre países do BRICS já decorrem fora do sistema dólar. Entre a Rússia e a China, quase 90% do comércio bilateral é efectuado em moedas próprias. O que começou como resistência tornou-se norma.[4]
As reservas mundiais de dólares nos bancos centrais caíram para 58%. Este é o nível mais baixo que essa percentagem atingiu nos últimos vinte e cinco anos. Investidores e tesouros nacionais estão a deslocar-se para activos físicos, sobretudo o ouro, que recupera o estatuto de refúgio supremo. O bloco BRICS acumula hoje mais de 12.500 toneladas de ouro, sendo a China e a Rússia responsáveis por quase 2.300 toneladas. O ouro regressa como fundamento de confiança, e o dólar, outrora intocável, vê-se reduzido a uma moeda entre outras. Mesmo o petrodólar, que é um dos pilares da supremacia americana desde a década de 1970, começa a fragmentar-se. A Arábia Saudita já aceita pagamentos em renminbi, moeda chinesa, por parte das suas exportações de petróleo.[5]
Em África, este movimento ganha contornos ainda mais significativos. O continente, há muito reduzido a fornecedor de matérias-primas, começa a posicionar-se como actor activo neste novo paradigma. O projecto de Longonjo, em Angola, avaliado em 80 milhões de dólares, deverá fornecer cerca de 5% da procura global de metais magnéticos, essenciais à indústria eléctrica e à produção de turbinas eólicas.[6] A Nigéria investe 400 milhões numa nova unidade de processamento de metais raros, prevendo que o sector mineiro represente 10% do PIB nos próximos dois anos. Pela primeira vez, a riqueza mineral africana poderá ser canalizada através de sistemas financeiros alternativos, fora do controlo das corporações ocidentais.[7]
A África contemporânea tem, assim, a oportunidade de ultrapassar os sistemas coloniais herdados, inserindo-se na nova geopolítica da matéria.
Mas há um subtexto mais profundo neste processo. Sempre que os Estados Unidos sentiram o seu domínio ameaçado, recorreram à força. A invasão do Iraque em 2003, sob o pretexto de armas de destruição massiva, foi antes de mais uma guerra pelo petróleo. Agora, porém, a disputa é mais complexa porque sem acesso a metais raros, nem a máquina militar norte-americana consegue funcionar. Os mísseis hipersónicos, os radares, os aviões e os chips de controlo dependem de elementos químicos que se concentram em territórios controlados pelo BRICS.
O nióbio, por exemplo, é considerado pelo Serviço Geológico dos Estados Unidos como o segundo mineral mais crítico para a segurança nacional, devido à sua resistência a altas temperaturas e ao papel que desempenha na construção de armamento avançado. O Brasil produz cerca de 98% do nióbio mundial, o que confere ao BRICS uma vantagem estratégica absoluta. A dependência é estrutural. A China detém quase o monopólio do processamento de metais raros, refinando mais de 99% dos três elementos essenciais usados na produção de ímanes resistentes ao calor. Enquanto a China produz anualmente mais de duzentas mil toneladas desses materiais, os Estados Unidos e a União Europeia juntos não ultrapassam as dez mil. Este fenómeno é uma assimetria brutal, e é precisamente nela que se desenha o futuro.[8]
Para concluir, o BRICS continua a provar que é a primeira tentativa coerente de construir um sistema financeiro alternativo ao liberalismo ocidental, assente na soberania dos recursos e na transparência das trocas. Ao substituir o dólar por uma nova medida de valor baseada em ouro e matérias-primas, o bloco não propõe uma utopia, mas uma correção histórica.







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