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ANGOLA, CORREDORES E CONCESSÕES : A Nova Face do Extrativismo Corporativo

  • Kwame Neto de Vasconcelos
  • 2 de set.
  • 8 min de leitura
Ilustração de Dio Cramer
Ilustração de Dio Cramer

Introdução


Em pleno século XXI, a narrativa do “desenvolvimento” em África continua a ser mediada por actores externos que mascaram a reprodução de estruturas coloniais de subordinação. Em Angola, este fenómeno materializa-se no modelo das concessões, uma prática histórica que entrega vastas porções do território e dos seus recursos a empresas estrangeiras sob o disfarce de “parcerias estratégicas”.


Este artigo parte da noção de “África das Empresas de Concessão”, cunhada por Samir Amin, para examinar como o extrativismo corporativo contemporâneo em Angola perpetua lógicas coloniais sob novas roupagens jurídicas, mediáticas e diplomáticas. Por meio de concessões logísticas, minerais e petrolíferas, estruturas de dependência são mantidas com participação activa de elites locais que funcionam como gestoras do interesse estrangeiro.



I. A “África das Empresas de Concessão”: fundamentos de um modelo histórico


Nos anos 1970, Samir Amin classificava certas regiões do continente africano como zonas dominadas por empresas de concessão, ou seja, conglomerados corporativos estrangeiros que extraíam riqueza sem gerar cadeias produtivas ou industrialização interna. Tal como na lógica colonial, estas empresas operavam com apoio jurídico do Estado, utilizavam estruturas de coerção local e limitavam-se a exportar matérias-primas para centros de decisão externos.


A concessão, enquanto regime económico, jurídico e geopolítico, servia perfeitamente à rede corporativa transnacional do Ocidente comum. Isto permitia, e ainda permite, nos dias de hoje, acesso barato a matérias-primas e produtos pouco ou não-transformados com baixo valor acrescentado e bloqueando o surgimento de burguesias nacionais produtivas, impedia também qualquer autonomia política real nos Estados africanos. O Estado local tornava-se, assim, uma máquina intermediária de legitimação e facilitação de contratos internacionais de espoliação.


As empresas concessionárias trazem capital, quadros e expertise estrangeiros; extraem, escoam e comercializam os recursos em bolsas internacionais; operam sob marcos legais blindados por tratados bilaterais, cláusulas de arbitragem e mecanismos de protecção de investimento. Esta arquitectura foi concebida para garantir previsibilidade aos investidores estrangeiros e desmobilização da soberania popular.


Hoje, o modelo sofisticou-se. A estrutura outrora dominada por firmas como a CFAO, Union Minière ou Société Générale des Colonies, é agora ocupada por gigantes como a Glencore, Anglo American, TotalEnergies, De Beers e Trafigura. O colono de cartola foi substituído pelo gestor transnacional de fato e gravata. Mas a lógica continua a ser de produção para fora, dependência interna e impunidade assegurada.



II. Casos exemplares em Angola: a continuidade do modelo


Falar das grandes corporações extrativistas que operam em África implica entrar num terreno onde a economia se cruza com a geopolítica, e onde as fronteiras entre o investimento e a dominação tornam-se, frequentemente, indistintas. Estas entidades são pilares estruturais de um sistema internacional que sobrevive da extracção de valor em condições profundamente assimétricas, portanto, jamais devem ser esquecidas ao abordar este tema. Entre essas corporações, sobressaem actores cujo poder não deriva apenas da sua capacidade técnica ou financeira, mas da sua função histórica no controlo dos recursos estratégicos do continente africano.


De forma particularmente emblemática, destacam-se conglomerados como a De Beers e a Anglo American, cujas origens remontam ao coração do projecto colonial britânico na África Austral e cuja evolução os posicionou como agentes centrais na arquitectura contemporânea do extrativismo global.


A De Beers, fundada no final do século XIX, na África do Sul, consolidou-se rapidamente como um cartel com alcance global no comércio de diamantes. A sua ligação ao projecto imperial britânico foi mais do que simbólica. A empresa serviu, desde cedo, como instrumento de consolidação territorial e financeira do domínio colonial, operando como um Estado dentro do Estado (Deep State) em territórios como a antiga Rodésia e a África do Sul. Com a entrada da família Oppenheimer, a empresa fortaleceu a sua hegemonia, chegando a controlar mais de 80 a 85% do mercado global de diamantes durante o século XX.  [1]


A Anglo American surgiu como complementaridade a esta lógica. Foi fundada em 1917 por Ernest Oppenheimer, e a sua expansão para sectores como o ouro, o carvão e os metais básicos consolidou um império industrial com tentáculos em vários continentes. As duas empresas operaram, durante décadas, em simbiose, estruturando a economia extractiva de países inteiros e influenciando directamente as suas políticas públicas, códigos mineiros e prioridades orçamentais. [2]


Durante a Guerra Fria, esta teia de interesses mostrou a sua flexibilidade ideológica. Em Angola, por exemplo, quando os Estados Unidos se viram forçados, no final da década de 1980, a cortar o apoio directo ao partido UNITA, que durante a época da Guerra Fria era um movimento rebelde, por pressão do Congresso, o vazio financeiro foi preenchido por canais paralelos. [3] A De Beers garantiu apoio indirecto à guerrilha em troca de acesso privilegiado aos diamantes das zonas sob controlo rebelde. Esta prática não só financiou a continuação da guerra como serviu de modelo para outros conflitos semelhantes, nomeadamente na Serra Leoa e na Libéria, popularizando o termo "diamantes de sangue". [4]


Ao mesmo tempo que exploravam estas redes paralelas de financiamento, as mesmas empresas apresentavam-se, nos fóruns internacionais, como defensores da legalidade, da transparência e da responsabilidade social. Esta duplicidade reflecte uma característica estrutural do capitalismo extractivo contemporâneo: a capacidade de contornar as regras do livre mercado enquanto, simultaneamente, financia instituições que promovem essas mesmas regras. O caso da Brenthurst Foundation, uma organização que, talvez, poucos de entre os interessados sobre história e geopolítica angolana conhecem, mas que esteve por trás da Platform for African Democrats (PAD), a mesma que esteve por detrás da organização do escandaloso evento que visava reunir Adalberto Costa Júnior, actual presidente do partido UNITA, com várias outras figuras públicas, estadistas e ex-estadistas, isto antes de ser dissolvida em junho de 2025. [5] Pois, esta mesma, desde a sua fundação em 2002, tem sido activamente financiada pela família Oppenheimer, o que é paradigmático. Esta fundação actuava como um think tank influente que visava promover reformas económicas ao aconselhar governos africanos e moldar o discurso sobre desenvolvimento e boa governação a partir de uma perspectiva alinhada com os interesses das elites transnacionais.


É neste contexto que se torna necessário reavaliar a presença destas corporações em África não como actores neutros ou parceiros de desenvolvimento, mas como elementos centrais de um sistema de reprodução da dependência. O seu poder económico, construído através de monopólios, concessões opacas e alianças com elites locais, é amplificado por uma rede de influência institucional que lhes permite definir as regras do jogo. Quando falamos de soberania económica ou de industrialização em África, não podemos ignorar a arquitectura de poder que estas empresas ajudaram a construir e continuam a sustentar.


Entre os exemplos do envolvimento destas corporações em Angola, destacam-se os seguintes casos:


1. A multinacional britânica Anglo American iniciou em 2022 trabalhos de prospecção de cobre no Alto Zambeze, província do Moxico, leste de Angola, próximo ao chamado "cinturão do cobre" da RDC e da Zâmbia. Esta região é historicamente conhecida como uma das zonas mais espoliadas da extracção mineral africana. A presença da Anglo American nesse território simboliza a continuidade de um paradigma de saque onde a mineração ocorre sem articulação com projectos de transformação local, sem processamento industrial em território angolano e sem qualquer preocupação em fomentar encadeamentos produtivos internos. A lógica de enclave impõe-se: o minério sai em bruto, os lucros são expatriados e o país permanece aprisionado numa economia dependente da extracção primária e da exportação desestruturada. [6]


2. Em Fevereiro de 2024, a multinacional De Beers selou um memorando de entendimento com a Endiama, a Sodiam e a ANRM para reativar sua actividade em Angola. O acordo inclui a reavaliação de jazidas kimberlíticas, expansão da mineração aluvial e promoção dos diamantes angolanos nos mercados internacionais. [7] Contudo, a estrutura do negócio permanece fiel à lógica das concessões coloniais porque o capital estrangeiro opera com privilégios contratuais e fiscais, define o ritmo da extracção e canaliza os lucros para o exterior, enquanto a retórica de sustentabilidade, inclusão e responsabilidade social é reciclada como cortina de fumo diplomática. O modelo da De Beers não representa ruptura, mas a continuidade elegante de um regime de expropriação disfarçado de investimento estrangeiro directo.


3. A concessão parcial do Corredor do Lobito à Trafigura, através do consórcio Lobito Atlantic Railway (LAR), representa uma mutação logística com implicações geoestratégicas profundas. Ao reorientar o escoamento de cobre e cobalto da África Central para o Atlântico, rompe-se a lógica dos portos orientais (sob influência chinesa) e impõe-se uma nova infraestrutura sob tutela ocidental. Esta manobra, promovida com apoio da administração Biden, reconfigura o papel de Angola como epicentro de um novo eixo atlântico de exportação mineral. Contudo, este processo está longe de ser recente. Já em 2010, a Trafigura tentava capturar a mesma ferrovia através da AngoFret, operada por Mariano Marcondes Ferraz e pelo Grupo DT, composto por figuras centrais do antigo regime do presidente José Eduardo dos Santos como "Dino" e "Kopelipa". [8] A concessão de 2022 apenas formaliza e legitima um arranjo que já vinha sendo incubado há mais de uma década, recorrendo a redes políticas, empresariais e jurídicas oriundas da era de José Eduardo Dos Santos [9].


4. Entre 2009 e 2011, a Trafigura operava com domínio quase absoluto sobre o mercado angolano de combustíveis, através da subsidiária Pumangol. As investigações conduzidas pelo Ministério Público da Confederação Suíça revelaram uma teia de corrupção sistemática, que envolveu pagamentos de mais de 4 milhões de euros e 600 mil dólares em subornos a altos quadros da Sonangol Distribuidora [10]. Em 2025, o Tribunal Penal Federal condenou a empresa e vários dos seus gestores, incluindo Michael Wainwright e Paulo Gouveia Júnior, por práticas de corrupção e violação dos deveres de organização empresarial, com base no artigo 322 do Código Penal Suíço [11]. Apesar disso, a empresa regressou a Angola, sendo colocada à frente do Corredor do Lobito com apoio dos EUA, evidenciando o grau de impunidade estrutural de que gozam os actores globais do extrativismo [12].


Estes casos demonstram como o modelo de concessão em Angola se sustenta num tripé composto por corrupção transnacional, reorganização política e reconversão diplomática. Os mesmos actores acusados judicialmente por práticas criminosas continuam a beneficiar de contratos milionários sendo blindados por uma arquitectura jurídica internacional que raramente responsabiliza corporações ocidentais por crimes cometidos em solo africano. A Angola contemporânea torna-se, assim, uma vitrina global de como o colonialismo económico se reinventa através das concessões modernas, da captura do Estado e da neutralização do direito internacional sob o manto da globalização económica.



III. Implicações estratégicas


Angola permanece amarrada a um modelo de inserção internacional estruturalmente dependente.


A retórica sobre reformas, diversificação e atracção de investimentos não tem força material para alterar a matriz de subordinação. Como bem denunciou Samir Amin, a "África das Concessões" não é uma metáfora. É um sistema vivo, alimentado por elites locais que intermediam a pilhagem e por instituições internacionais que garantem a blindagem jurídica e política dos operadores estrangeiros. A soberania económica de Angola foi hipotecada à lógica do capital transnacional, disfarçado de parceiro estratégico [13].


Este diagnóstico converge com os alertas de Walter Rodney sobre o subdesenvolvimento como produto de uma relação activa de exploração e com críticas de vários pensadores progressistas ao neocolonialismo como fase superior do imperialismo. Acrescente-se ainda a análise de Issa Shivji sobre o papel cúmplice das elites africanas na administração da dependência  [13], tal como o conceito de "comprador bourgeoisie" desenvolvido por Frantz Fanon para descrever a classe que intermedeia o capital estrangeiro sem modificar as estruturas de produção. A combinação destas teorias evidencia que a dependência angolana não é acidente nem atraso, por ser arquitectura funcional de uma economia-mundo onde a sua utilidade reside em ser fornecedora permanente de matérias-primas e receptor passivo de tecnologia e capital importado.



Conclusão


A natureza do extrativismo em Angola ultrapassa a dimensão económica. Trata-se de uma ideologia, uma forma de organização do poder que transforma jazidas em instrumentos de dominação externa e elites locais em procuradores do saque. A história das concessões, do colonialismo tardio ao neoliberalismo do pós-guerra civil, revela um padrão de permanência estrutural. Romper este ciclo exige mais do que reformas administrativas ou alternância política. Exige ruptura. Exige a reapropriação dos recursos estratégicos pelas mãos do povo. Exige um novo contrato económico e político que coloque a soberania no centro da reconstrução nacional. Enquanto o regime de concessões persistir, Angola será uma nação rica em recursos e pobre em destino.

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